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Artigo – O cabimento de ação de usucapião na pendência de regularização urbanística – por Debora Cristina de Castro da Rocha e Edilson Santos da Rocha
02 DE JUNHO DE 2023
A usucapião é um conceito legal que permite aos indivíduos obter a propriedade de bens por meio da posse mansa e pacífica, com ânimo de dono, por um período de tempo especificado, sem a permissão do proprietário.
As ações de usucapião consistem em um dos principais instrumentos quando o assunto é a regularização de imóveis, cuja transferência de titularidade junto ao cartório de registro de imóveis competente não se revela possível em virtude da ausência do preenchimento de requisitos legais a viabilizar a transmissão.
Nesse caso, o interessado na regularização através da usucapião, terá que se adequar a uma das espécies previstas em nosso ordenamento jurídico, entre as quais, a Usucapião Ordinária, Extraordinária, Especial Urbana, Especial Rural, Especial Urbana Coletiva e por Abandono de Lar, todas estas com previsões no Código Civil, na Constituição Federal e no Estatuto das Cidades.
Tanto na esfera judicial, quanto extrajudicial, o reconhecimento do direito à usucapião do imóvel está baseado essencialmente na existência da posse ad usucapionem e no decurso do tempo, e especificamente, na satisfação das condições que a espécie escolhida determinar.
Entre as condições, há impedimento quando se tratar de imóvel particular sem registro e em loteamento irregular?
De acordo com o julgamento do Recurso Especial 1.818.564/DF, pelo Superior Tribunal de Justiça, não há qualquer dúvida sobre a possibilidade de usucapir imóveis particulares inseridos em loteamento irregular, mesmo diante do fundamento utilizado no referido caso pelo Ministério Público do Distrito Federal, de que a falta de regularização do loteamento tornaria o registro imobiliário indivisível.
A discussão em questão estava relacionada ao cabimento das ações de usucapião que tenham por objeto imóveis desprovidos de registro e localizados em loteamentos do Distrito Federal. O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Moura Ribeiro, salientou que “a usucapião está claramente ligada à função social do imóvel” e que “o fato de o imóvel estar inserido em loteamento irregular não impede sua usucapião”.
O Ministério Público argumentou que a usucapião de imóveis em loteamentos irregulares seria contrária ao interesse público e favoreceria a proliferação de loteamentos irregulares. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça confirmou que a usucapião de imóveis em loteamentos irregulares está de acordo com a função social da propriedade e que consiste no meio legal apto a regularizar a situação dos seus ocupantes.
Pois, segundo entendimento do STJ no referido caso, a possibilidade de registro da sentença declaratória da usucapião não se confunde com o direito material daquele que o possui, que está relacionado basicamente com o exercício da posse e com o decurso do tempo.
Em síntese, o julgamento do Recurso Especial 1.818.564/DF confirma a possibilidade de usucapião de imóveis particulares inseridos em loteamentos irregulares, mesmo diante das impugnações formuladas pelo Ministério Público do Distrito Federal.
Portanto, as pessoas físicas que ocupam imóveis particulares em loteamentos irregulares podem utilizar a usucapião como meio legal para adquirir a propriedade do imóvel, desde que atendam aos requisitos legais para usucapião.
O direito à usucapião deve ser garantido
Ainda quanto ao referido julgado, a Corte se pronunciou expressamente sobre as dimensões urbanística, jurídica e registrária, asseverando a impossibilidade de negar o direito à usucapião de imóvel, simplesmente com base na sua inserção em loteamento irregular, considerando que a declaração do direito de propriedade, relacionada com a dimensão jurídica, não se confunde com os atos registrais, que se caracterizam como a dimensão registrária, tampouco com a regularidade urbanística da ocupação, definida como dimensão urbanística.
O direito de propriedade declarado por sentença judicial consiste na dimensão jurídica do direito de propriedade que não deve ser confundida com outras dimensões, tais como a dimensão cadastral ou a dimensão urbana.
A dimensão do registro dos direitos de propriedade refere-se ao processo de registro da propriedade junto às autoridades competentes, que se diga, são essenciais para garantir o reconhecimento legal da propriedade e para proteger tais direitos. No entanto, a certificação e a publicidade que decorrem do registo não devem ser confundidas com a dimensão jurídica do direito de propriedade, que é determinada por decisão judicial.
A dimensão urbana dos direitos de propriedade refere-se à regularidade da ocupação em áreas urbanas. Nas áreas urbanas, a regularidade de ocupação é definida por leis e regulamentos urbanísticos, que visam garantir que o imóvel seja utilizado de forma a atender ao interesse público e contribuir para o desenvolvimento da cidade.
No entanto, a posse física da propriedade em áreas urbanas não deve ser confundida com o registro ou a regularidade urbana da ocupação, pois são dimensões distintas do direito de propriedade.
Nesse mesmo sentido, enfatizou-se que o fato de ser reconhecido o direito à usucapião, não impede a implementação de políticas públicas que tenham por escopo o desenvolvimento urbano, eis que a usucapião pode, inclusive, contribuir para o processo de regularidade urbanística.
As políticas públicas de desenvolvimento urbano são essenciais para assegurar a regularidade da urbanização e melhorar as condições de vida dos cidadãos. A controvérsia em torno da usucapião limita-se a definir se é possível reconhecer a usucapião de bens imóveis na hipótese de não cumprimento do prazo exigido para a usucapião.
Existem outros instrumentos disponíveis para a regularização urbana, como a usucapião especial de imóvel urbano e a concessão de uso especial para fins habitacionais. De fato, a modalidade de usucapião de imóveis urbanos teve como base as novas políticas urbanísticas do Estatuto da Cidade.
A usucapião pode, inclusive, contribuir para o processo de regularização urbanística. De acordo com o artigo 1.238 do Código Civil, a usucapião extraordinária pode ser reconhecida para quem exercer a posse mansa por 15 anos. Adicionalmente, instrumentos como a usucapião especial de imóvel urbano e a concessão de uso especial para fins habitacionais também podem contribuir para a regularização das zonas urbanas.
O reconhecimento da usucapião não impede a implementação de políticas públicas de desenvolvimento urbano. Muito pelo contrário, constitui, em diversas hipóteses, uma ferramenta que pode ser utilizada para facilitar o processo de regularização urbana. Com isso, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser impedido por legislação infraconstitucional que contrarie a constituição federal. Além disso, o fato de um imóvel estar inserido em loteamento irregular não justifica a negativa ao direito à usucapião.
A inércia do Estado não pode impedir o reconhecimento da usucapião
Por esta mesma perspectiva, tem-se ainda por induvidoso que negar o direito à usucapião apenas porque o imóvel se encontra em ocupação irregular, atenta contra a legislação pátria, em especial, contra a Constituição Federal, que em momento algum impõe a ocupação regular do solo como requisito para o reconhecimento do direito, ainda mais quando a ocupação estiver sedimentada há muito tempo.
A usucapião é um conceito legal que permite aos indivíduos obter a propriedade de bens por meio da posse mansa e pacífica, com ânimo de dono, por um período de tempo especificado, sem a permissão do proprietário.
No entanto, historicamente, houve barreiras para o reconhecimento da usucapião, visto que era concebida como uma ameaça aos direitos de propriedade e uma violação do princípio da propriedade exclusiva.
Por sua vez, as abordagens legais modernas permitiram o reconhecimento da usucapião como um meio legítimo de aquisição dos direitos de propriedade, baseando-se no princípio de que a inércia do proprietário do imóvel, aliada ao tempo de posse, pode levar à aquisição da propriedade.
No Brasil, o conceito legal de usucapião permite o reconhecimento do direito de aquisição da propriedade, mesmo que a posse original não tenha sido autorizada. Além disso, o novo Código de Processo Civil estabeleceu o reconhecimento extrajudicial da usucapião, facilitando ainda mais a satisfação do direito pretendido. Tal evolução jurídica demonstra uma tendência em reconhecer a legitimidade das ações de usucapião, mesmo que em loteamentos irregularidades, ainda que descumpridos os parâmetros urbanísticos.
Debora Cristina de Castro da Rocha é advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado nas áreas do Direito Imobiliário e Urbanístico, Mestre em Direito Empresarial e Cidadania e Professora.
Edilson Santos da Rocha é advogado pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia.
Fonte: Migalhas
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